Olhares sobre o “Mar de Minas”:
percepções dos moradores de
Alfenas e Fama relativas ao
lago de Furnas (1963-1999)
Marcos Lobato Martins
Introdução
Na história, os corpos d’água desempenharam múltiplos papéis: mataram a sede de
aldeias e cidades, de homens, rebanhos e lavouras, serviram como fronteiras de províncias,
impérios e estados nacionais, ofereceram orientação geográfica para viajantes e colonos,
canais de transporte e comunicação para regiões interioranas, dotaram de força hidráulica
fazendas, indústrias e núcleos urbanos. Isto requereu construir diversos tipos de “objetos
técnicos”. Conforme assinalou Milton Santos (1997, p. 186):
A história das chamadas relações entre sociedade e natureza é, em todos
os lugares habitados, a da substituição de um meio natural, dado a uma
determinada sociedade, por um meio cada vez mais artificializado, isto é,
sucessivamente instrumentalizado por essa mesma sociedade. Em cada
fração da superfície da Terra, [...] a parte do “natural” e do “artificial”
também varia, assim como mudam as modalidades do seu arranjo.
No Brasil, os corpos d’água primeiro foram vistos e apropriados como meios de
penetração colonial e vias de transporte de mercadorias e passageiros, especialmente nos
séculos XVIII e XIX. A propósito, é bastante conhecida a obra de Sérgio Buarque de Holanda
(1976) a respeito da rota fluvial que, no século XVIII, interligava São Paulo com as minas
de Cuiabá. Em Minas Gerais, nos Oitocentos, diversos planos governamentais propuseram
articular a navegação fluvial a vapor com ferrovias e estradas carroçáveis (GODOY;
BARBOSA, 2007; MARTINS, 2010). Entre as décadas de 1870 e 1920, os rios passaram
a representar vetores privilegiados para projetos ferroviários, mas também obstáculos que
interrompiam as linhas de trem e as estradas carroçáveis, exigindo a construção de pontes.
A partir dos anos 1930, o que chamou a atenção dos governos, técnicos e empresários foi o
potencial de energia elétrica que os rios poderiam fornecer (ARRUDA, 2008). As barragens
das usinas hidrelétricas transformaram drasticamente as paisagens dos rios, na medida em
que promoveram grande “reorganização do natural”, fruto de intervenções humanas de
enorme monta (WORSTER, 2003). Elas modificaram a gestão do território em função de
planos de eletrificação e geraram conflitos envolvendo governos, empresas, populações
tradicionais e organizações ambientalistas.
A primeira grande usina hidrelétrica brasileira surgiu no início da década de 1960,
aproveitando o potencial energético do Rio Grande. Trata-se da Usina de Furnas, situada
no Sudoeste de Minas Gerais. Seu imenso reservatório tem 23 bilhões de metros cúbicos
de água, superfície de 1.457 km
, perímetro de 3,7 mil km (equivalente a quase metade da
extensão da costa brasileira) e profundidade média de 13 m. Esse lago artificial é o objeto
deste trabalho. Pretende-se examinar as variações nas percepções relativas ao lago de
Furnas dos moradores das cidades de Alfenas e Fama, dois dos municípios mais afetados
pela barragem, desde o início do enchimento do reservatório, em 1963, até os anos 1990. A
abordagem é eminentemente qualitativa.
Yi-Fu Tuan (1980, p. 4) define percepção como “[...] a resposta dos sentidos aos
estímulos externos, atividade proposital na qual certos fenômenos são claramente registrados
enquanto outros são bloqueados [...]”. Uma pessoa, ao percorrer e vivenciar um determinado
espaço atribui a este um valor, que pode evoluir para um sentimento no qual o espaço,
diferenciado, torna-se um lugar. Percepções ambientais remetem a relações mais afetivas com
o espaço, carregando marcas das trajetórias, valores, atitudes, visões de mundo e interesses
dos indivíduos e grupos sociais (TUAN, 1980). P. Rodaway (1995) refere-se a percepções
como sensação, influenciadas pelos órgãos dos sentidos, e a percepções como cognição,
resultantes de concepções mentais. Dessa forma, ideias sobre o ambiente envolvem tanto
respostas a impressões, estímulos e sentimentos, mediados pelos sentidos, como também
processos mentais relacionados a experiências, associações conceituais e condicionamentos
culturais. Por isso, as percepções ambientais atuam como guias para a ação, orientando
práticas e relações sociais de sujeitos que lutam para dar sentido ao mundo e nele encontrar
seu lugar. Como escreveu T. Ingold (2000), as ações humanas sobre o ambiente, os usos e as
atividades produtivas que ocorrem em dado local, bem como sua trajetória intertemporal,
são determinadas por distintas formas de perceber o mundo natural e as paisagens.
Simon Schama (1996), ao realçar as dimensões simbólicas das paisagens e sua
produção social, considera que as visões do ambiente comportam lembranças, mitos e
significados complexos, de modo que ambiente e percepção são inseparáveis. Nas palavras
do autor, deve-se “[...] reconhecer que é nossa percepção transformadora que estabelece
a diferença entre matéria bruta e paisagem [...]” (SCHAMA, 1996, p. 20). A paisagem,
portanto, é obra da mente e está relacionada com “persistentes e inelutáveis obsessões”
socioculturais, que conformam “tradições paisagísticas” capazes de moldar instituições
e expressar as virtudes de comunidades políticas ou sociais. Assim, por exemplo, “[...] a
identidade nacional [...] perderia muito de seu fascínio feroz sem a mística de uma tradição
paisagística particular: sua topografia mapeada, elaborada e enriquecida como terra natal
Nessa perspectiva, pretende-se analisar a trajetória das percepções relativas ao
lago de Furnas, cuja historicidade revela algo a respeito das formas de relacionamento e de
apropriação da represa por parte dos moradores das localidades lindeiras. As fontes empregadas
neste trabalho são textos de memorialistas, notícias de jornais locais e testemunhos de
moradores de Alfenas e Fama. Os memorialistas e as páginas dos jornais possibilitam abordar,
sobretudo, as representações produzidas e difundidas pelas camadas letradas da população
regional, cuja influência na formação da “opinião pública” e nas políticas municipais não
se pode subestimar. As entrevistas permitiram recolher posicionamentos de outros tipos
de sujeitos, pessoas desalojadas pela represa e gente simples que, na infância ou no início
da vida adulta, se deparou com o lago de Furnas na condição de elemento definitivo do
espaço regional. Algumas entrevistas foram realizadas no âmbito desta pesquisa, enquanto
outras foram publicadas em número especial do Jornal dos Lagos, por ocasião dos 50 anos
de Furnas. São depoimentos de pequenos proprietários e comerciantes, trabalhadores rurais
e donas de casa, servidores públicos e indivíduos reconhecidos por suas comunidades como
“guardiães da história” local.
2
A população, os rios e as várzeas na bacia do Sapucaí
O Rio Sapucaí percorre terras de São Paulo e Minas Gerais. Suas nascentes estão
situadas na Serra da Mantiqueira, próximas a Campos do Jordão. O rio, após fluir no território
de Minas Gerais por mais de 400 km, deságua no Rio Grande. No povoado de Pontalete, em
Três Pontas, o Rio Sapucaí recebe as águas do Rio Verde. A área drenada pela bacia do Sapucaí
abrange 40 municípios do Sul de Minas, alcançando cerca de 8.800 km
2
. Os principais afluentes
do Sapucaí, além do Rio Verde, são os Rios Cervo, Dourado, Lourenço Velho, Mandu, Sapucaí
Mirim, Turvo, Vargem Grande, Machado, Peixe e Cabo Verde (MAGALHÃES JunioR;
DINIZ, 1997). Os rios da bacia possuem leitos sinuosos e bom volume de água, e neles há
muitas cachoeiras e corredeiras. A partir da Serra da Mantiqueira, na direção noroeste, as
terras drenadas pela bacia do Sapucaí compõem planaltos sucessivos escalonados em “degraus”.
A topografia predominante é íngreme, o que não favorece a agricultura. A vegetação original
era de mata atlântica e araucária (porção leste da bacia) e cerrado (porção oeste), mas foi
substituída em grande parte por pastagens. Durante o ano, dominam temperaturas amenas,
com valores médios entre 18 e 22 °C. A precipitação média anual é inferior a 1500 mm,
podendo ocorrer um ou dois meses sem chuva (INSTITUTO..., 1977).
Desde o século XIX, a zona do Sapucaí adquiriu destaque na produção de
abastecimento interno, dedicando-se à criação de gado e de porcos, às lavouras de milho,
feijão, arroz, fumo, algodão, e à produção de queijos, toucinho, doces, rapadura, açúcar,
aguardente e panos. Os mercados do Rio de Janeiro e São Paulo absorveram a maior parte
das exportações regionais (LENHARO, 1979; LIBBY, 1988). Estas atividades aproveitavam
as áreas de várzeas, de modo que as “baixadas” ribeirinhas eram os terrenos mais valorizados.
No final do século XIX, o café começou a ocupar terrenos de encostas em diversos pontos
do Sul de Minas (FILLETO; ALENCAR, 2001).
Uma indicação da importância das várzeas na bacia do Sapucaí é fornecida pelo
memorialista Murilo Lambert (1977, p. 8-9):
O sítio do meu avô era banhado pelo Rio das Antas [afluente do Sapucaí
Mirim] na parte das vargens, onde todo ano se plantavam arrozais. O rio
derramava suas águas na época das chuvas, alagando as vargens de todas
as propriedades do município. [...] Quando a enchente acabava, os arrozais
viçavam e amadureciam. Depois vinha a safra do arroz, carros de bois subindo
e descendo os vargedos, transportando o arroz com casca para a cidade.
Na mesma direção vão os testemunhos de Normando Trindade de Moraes e de
Antônio Camilo da Silva Sobrinho:
Eu vim para Alfenas em 1951 para fazer um serviço de estudo de retificação
do Rio Cabo Verde. No período das cheias, o rio invadia aquelas várzeas
todas e causava muito prejuízo para as lavouras de arroz. O povo vivia
numa dependência grande do rio, porque plantava nas várzeas. As pessoas
também pescavam muito. Nadava-se pouco, pois o rio era perigoso
(Depoimento de Normando Trindade de Moraes, topógrafo, engenheiro,
ex-funcionário de Furnas, 78 anos de idade. Depoimento colhido pelo
autor em 05 de julho de 2010. 1 fita cassete. 90 minutos).
Meus pais eram pequenos proprietários em Tomé [Alfenas]. No Cabo
Verde a gente pescava. Havia também exploração de areia. Os areeiros
tiravam areia de dentro do rio com canoa e traziam para a cidade, onde
era usada principalmente no calçamento das ruas. Naquela época [anos
1950], usava plantar nas várzeas e fazer pasto nas encostas. Não tinha
plantação no seco. Arroz, milho, feijão, tudo era na beira do rio. Quando
as pastagens secavam, o gado era trazido para as várzeas (Depoimento de
Antônio Camilo da Silva Sobrinho, contabilista, jornalista, vereador em
Alfenas na década de 1970, 65 anos de idade. Depoimento colhido pelo
autor em 07 de maio de 2010. 1 fita cassete. 60 minutos).
Numerosos bairros rurais ficavam situados nas proximidades do Rio Sapucaí,
movimentados pela produção agrícola e pelo trânsito de boiadas que rumavam para as
estações da Rede Mineira de Viação e para o entroncamento ferroviário de Três Corações
(ROSA; SAES, 2010). Este era o caso de Barranco Alto, distrito de Alfenas, de Rochas,
povoado próximo de Fama, e de Itaci, distrito de Carmo do Rio Claro, onde havia grande e
afamado laticínio. Até a década de 1950, ainda transitavam no Sapucaí vapores transportando
mercadorias e passageiros, em percurso de 105 km entre os portos de Fama e Carrito, em
Carmo do Rio Claro (HORVÁTH, 2008).
3
A construção de Furnas: apreensões e resistências
Nos anos 1950, em função do avanço da industrialização e da urbanização no país, a
escassez de eletricidade tornou-se evidente. Indústrias e domicílios sofriam constantemente
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Olhares sobre o “Mar de Minas”: percepções dos moradores de Alfenas e
Fama relativas ao lago de Furnas (1963-1999)
Ambiente & Sociedade
com interrupções do fornecimento e prolongados períodos de racionamento. Em Minas
Gerais, o tema da energia elétrica adquiriu centralidade nos governos Milton Campos
(1946-1950) e Juscelino Kubitschek (1951-1955). O planejamento do setor elétrico mineiro,
definido em 1951, enfatizava três pontos: a) a intervenção do governo na indústria de energia;
b) a preferência por grandes sistemas de usinas interligadas; c) projetos estrategicamente
orientados para a demanda industrial (DULCI, 1999, p. 93-105). Essa política energética,
executada pela CEMIG (Centrais Elétricas de Minas Gerais, criada em 1952), foi levada
para o plano federal durante a presidência de JK (1956-1960).
Em São Paulo, a imobilidade das empresas Light e American Force and Power levou o
governo estadual a investir, em 1953, em um Plano Estadual de Eletrificação. A intenção era
aproveitar o potencial energético dos Rios Tietê e Paranapanema, para o que inicialmente
se constituiu a hidrelétrica de Salto Grande por meio da empresa estadual USELPA (Usinas
Elétricas do Paranapanema), no período 1951-1958 (CENTRAIS..., 1989).
Nesse contexto, elaborou-se o projeto de construção da Usina de Furnas. Em fevereiro
de 1957, o Decreto 41.066 criou a Central Elétrica de Furnas, com sede em Passos (MG).
A construção da Usina de Furnas estendeu-se de 1958 a 1962. A usina, com capacidade de
1,216 milhão de kW, começou a funcionar em 1963. O reservatório de Furnas desapropriou
aproximadamente 5 mil propriedades e inundou cerca de 500 mil ha agricultáveis (Jornal
dos Lagos, n. 2269, 5 de maio de 2007, p. 2-3). Carmo do Rio Claro foi o município que mais
perdeu terras; Campo do Meio, Fama, Guapé e Boa Esperança perderam área urbana, bem
como os distritos de São José da Barra (pertencente a Alpinópolis, emancipado em 1994),
Santo Hilário (Pimenta) e Itaci.
Logo que surgiram as primeiras notícias sobre o projeto, as cidades da área ficaram
sobressaltadas. Carmo do Rio Claro, Guapé e Fama vivenciaram a construção de Furnas
como uma catástrofe. Depoimentos de antigos moradores dessas cidades indicam o
sofrimento causado por Furnas:
As águas alagaram as várzeas em que o povo plantava alho, arroz, feijão e
cobriram as árvores que davam lenha para os fogões. Alguns acharam muito
ruim perder as terras, mas reclamar de que jeito? As boiadas que passavam
diariamente pelos Rochas indo para Três Corações sumiram. Ir para Fama
ficou muito difícil. As festas minguaram. A jardineira que ligava Alfenas
a Paraguaçu, passando pelos Rochas, parou de circular. Acabou tudo.
(Depoimento de Sebastião Teodoro Rocha, morador de Fama, 89 anos de
idade, Jornal dos Lagos, n. 2269, 5 de maio de 2007, p. 5).
A cidade [Carmo do Rio Claro] só tinha lavoura de milho e arroz. Os
fazendeiros entraram na Justiça contra Furnas e alguns chegaram a armar
os empregados. Houve quem quisesse apossar dos fuzis do Tiro de Guerra.
Vieram 50 soldados do Exército de Pouso Alegre para retirar os que não
queriam sair de suas terras. Com a represa pronta, Carmo morreu, o povo
passou fome, muitos foram embora para Boa Esperança, Areado e Alfenas
(Depoimento de Pedro Ricardo de Carvalho, morador de Carmo do Rio
Claro, 66 anos de idade, Jornal dos Lagos, n. 2269, 5 de maio de 2007,
p. 4).
Na cidade de Guapé, liderados pelo vigário João Coining (que, de acordo com
matéria publicada no Jornal dos Lagos (n. 2269, 5 de maio de 2007, p. 8) dizia nas pregações
não ser pecado matar um “furneiro”), políticos locais e proprietários entraram na Justiça,
achincalharam os “furneiros”, ameaçaram-nos de morte, numa resistência que durou anos,
mas que se configurou ineficaz. Para acalmar parcialmente os ânimos, Furnas construiu
a nova Guapé (Jornal dos Lagos, n. 2269, 5 de maio de 2007, p. 8). Em Barranco Alto,
houve movimento contra Furnas liderado pelo pároco de Conceição da Aparecida, cujas
reivindicações eram: a) construção de nova igreja longe da orla da represa; b) instalação
de balsa para evitar que o lugar ficasse isolado; c) aumento das indenizações pagas aos
moradores que perderam terras e benfeitorias (cf. depoimento de Antônio Camilo da Silva
Sobrinho ). Apenas a reivindicação da balsa foi atendida prontamente. A construção
da nova igreja só ocorreu nos anos 1970 (cf. depoimento de Normando Trindade de
Moraes).
Em 24 de fevereiro de 1957, o jornal O Alfenense noticiava a agitação na cidade por
causa do decreto de criação de Furnas:
Aqui em Alfenas são realizadas reuniões e concentrações para discutir
os problemas que advirão com a construção da represa. Há um clima
de incertezas, de exaltação, quase de revolta. Até aos palcos a discussão
chegará em breve. O grupo de teatro “Carvalho Júnior” começou a ensaiar
a peça “Na boca das furnas”, um fiel retrato da vida interiorana que,
subitamente, se vê em face da técnica e do gigantismo industrial.
2
Os depoimentos seguintes mostram que as opiniões na cidade ficaram divididas entre
“interesses urbanos” e “interesses rurais”, os primeiros mais preocupados com os efeitos de
modernização do comércio e dos serviços e os segundos com a continuidade da rotina nas
unidades agropecuárias:
Quando chegaram a Alfenas as primeiras notícias sobre a construção de
Furnas, ficou todo mundo apavorado, vendendo terra. A maioria do povo
era contra, ninguém queria saber da represa. Os fazendeiros eram contra.
Mas os comerciantes esperavam lucrar com o movimento de Furnas. Eu
mesmo trabalhava na firma Engel & Irmãos, de material de construção,
que ganhou muito dinheiro (Depoimento de Antônio Camilo da Silva
Sobrinho).
Com Furnas, Alfenas mudou completamente. Ela tinha no máximo 20
mil habitantes e, então, começou a crescer. Aqui tiveram dois escritórios
de Furnas, um para estudos e outro para obras. Havia pelo menos 10
engenheiros, fora os topógrafos, técnicos, encarregados. O movimento
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Olhares sobre o “Mar de Minas”: percepções dos moradores de Alfenas e
Fama relativas ao lago de Furnas (1963-1999)
Ambiente & Sociedade
de Furnas revolucionou a vida da cidade (Depoimento de Normando
Trindade de Moraes).
Os políticos não ficaram alheios às alterações provocadas por Furnas. Os do PSD,
partido de JK, apoiaram Furnas desde a primeira hora. O discurso por eles empregado era,
conforme Normando Trindade de Moraes, o do “progresso”:
Para aplacar a raiva do povo, dizia-se que o Brasil estava parando por falta
de energia elétrica. Basta dizer que em Alfenas, naquela época, a gente
não podia usar chuveiro elétrico porque a luz caía. A gente também dizia
que iam ser feitas estradas para compensar a estrada de ferro (Depoimento
de Normando Trindade de Moraes).
A UDN opunha-se ao projeto. Na região, a principal voz contrária a Furnas foi o
deputado federal Geraldo Freire, de Boa Esperança. Ele dizia que a usina era um absurdo,
um esbulho. Os discursos de Geraldo Freire, alguns pronunciados no Clube XV, em Alfenas,
reiteravam o mesmo argumento: “[...] onde já se viu inundar terras altamente férteis para
gerar eletricidade que de nada valerá para o bem-estar dos moradores da região? [...]” A
oposição udenista também dizia que a região ficaria isolada por causa da extinção do ramal
Varginha-Juréia (VIEIRA, 2002, p. 38-47). Porém, quando houve a mudança de governo,
com a chegada de Jânio Quadros à Presidência – que nomeou gente da UDN para a Central
Elétrica de Furnas – as críticas dos políticos udenistas da região cessaram.
3
Um dos fatores que mais contribui para indispor Furnas a grandes parcelas das
populações da bacia do Sapucaí foi o problema das indenizações. Os afetados pelo enchimento
do lago receberam apenas o valor venal das terras alagadas. E os que “entraram em demanda”
tiveram depositado em juízo as indenizações calculadas pelas equipes do Departamento de
Patrimônio de Furnas, corroídas pela inflação crescente. A respeito das indenizações, dois
testemunhos são esclarecedores:
O pessoal de Furnas chegava e dava três alternativas: você podia aceitar
um valor com direito a desmanchar seu imóvel e pegar o material, você
podia deixar tudo para Furnas ou podia ir para a Justiça. Meu pai resolveu
amigavelmente, mas o dinheiro que recebeu por tudo nem deu para
construir outra casa (Depoimento de Ângelo Saksida, Jornal dos Lagos,
n. 2269, 5 de maio de 2007, p. 5).
A indenização não era o valor real da terra. Mas o dono recebia um preço
e podia usufruir da terra até a chegada da água. Aqueles que pegaram
logo o dinheiro se deram bem, mas aqueles que caíram na conversa de
advogado tiveram prejuízo (Depoimento de Marcos Coelho, proprietário
rural e oficial do Cartório de Registro Civil e Notas de Córrego do Ouro,
58 anos de idade, colhido pelo autor em 19 de abril de 2010. 1 fita cassete.
60 minutos).
O caso de Furnas permite relativizar o ponto de vista de Warren Dean (1996,
p. 281), para quem a “[...] ideia de desenvolvimento econômico penetrava a consciência da
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Ambiente & Sociedade
cidadania, justificando cada ato do governo e de extinção da natureza [...]”. Os “caipiras” de
Alfenas, Areado, Carmo do Rio Claro e Fama não se deixaram seduzir pelo canto de sereia
do progresso. Neste aspecto, há contraste com a paulista Salto Grande. No Paranapanema,
segundo Eduardo Giavara (2007, p. 249), “[...] muitos acreditavam, veementemente, que a
cidade poderia, em poucos anos, se tornar um pólo industrial e gerar milhares de empregos
[...]”. No caso de Furnas, a formação do reservatório despertou inicialmente raiva e
ressentimento na maioria dos moradores. Sua imagem era de mar artificial funesto, evocando
tristeza e perplexidade, como mostra o testemunho de um deslocado pela represa:
Deus quando fez a terra colocou tudo no lugar certo, mar, montanha,
rio, vargem... Isto o homem não podia alterar. Nós não acreditávamos
na construção da represa, porque era um abismo cercar um rio como
aquele. Se estancasse o rio, ele ia embrabar, cobrir os baixos, os vargedos,
emporcalhar e criar mosquito. Quando vi aquele mar de água, foi só
recordação e mau humorismo. No Itaci, ficou tudo muito desusado
(Depoimento de Benedito Fialho, 79 anos de idade, natural de Itaci, onde
foi pequeno agricultor. Depoimento colhido pelo autor em 30 de junho de
2010. 1 fita cassete. 90 minutos).
Observe-se que, conforme o antigo agricultor, o lago de Furnas teria trazido a “água
pesada e grossa”, água “parada”, de má qualidade, que junta sujeira, taboa e lodo amarelo.
A água de Furnas contrastaria, portanto, com a “água pequena” (que corre entre árvores e
junta lodo verde), oriunda de nascentes e córregos, tradicionalmente tida como boa para
beber (GALIZONI, 2010).
Para muitos que vivenciaram o processo de construção de Furnas, as atitudes da
estatal até os anos 1980 reforçaram esta percepção negativa. Afinal, a postura de Furnas
foi pautada, de um lado, pela indiferença diante das reivindicações dos municípios lindeiros
e postergação do atendimento a demandas específicas; de outro lado, a estatal procurou
conter investimentos na região não associados à geração e transmissão de energia. A política
da empresa era, por assim dizer, de “negligência salutar”: o que não atrapalhasse a operação
da usina podia ser feito tanto na orla da represa, quanto com as águas do reservatório.
4
A incorporação do lago de Furnas à paisagem regional
Dissipado o choque inicial gerado pela hidrelétrica, lentamente surgiram mecanismos
de convivência com o lago de Furnas e estratégias de apropriação da orla e das águas. Papel
destacado coube às mulheres, aos jovens e às crianças, como bem ilustra o caso de Fama. O
testemunho de Ilma Luiza Generosa Alexandre sintetiza o que ocorreu:
Mudei para Fama em 1968. Praticamente todo dia eu descia para a praça
da Matriz e ia para a beira do lago lavar roupa. Lá na água eu encontrava
muitas outras mulheres. A gente conversava, cantava, trabalhava horas e
horas. A beira da represa em Fama virou ponto de encontro (Depoimento
de
Ilda Alexandre, 67 anos de idade, ex-funcionária da Prefeitura de Alfenas,
colhido pelo autor em 8 de abril de 2010. 1 fita cassete. 60 minutos).
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Olhares sobre o “Mar de Minas”: percepções dos moradores de Alfenas e
Fama relativas ao lago de Furnas (1963-1999)
Ambiente & Sociedade
O depoimento revela a incorporação espontânea do lago de Furnas ao cotidiano
dos moradores de Fama, Harmonia, Barranco Alto, Pontalete, Campo do Meio e Itaci,
tanto como local de atividades domésticas quanto como espaço cotidiano de sociabilidade.
Ainda conforme Ilma Alexandre, nessa época os moradores de Fama iniciaram o costume
de receber parentes e amigos, nos períodos de férias escolares, para nadar na represa.
A partir dos anos 1970, mais e mais pessoas da região passaram a frequentar diversos
pontos do lago em busca de lazer. Os jovens preferiram a cidade de Fama, os bairros rurais
dos Rochas e Harmonia, a Ponte das Amoras e os aterros na direção de Areado. Proliferaram
bares e restaurantes, sob a olímpica indiferença de Furnas. A prática da pescaria de lazer
também aproximou muitas pessoas da represa. Dois testemunhos ilustram essa forma comum
de utilização das águas de Furnas:
Nossa região é privilegiada pela natureza. Tem o lago de Furnas. Eu desde
rapazinho vou pescar com os amigos em Harmonia e Barranco Alto. O
lago é ideal para ir com a família, para ver muitos tipos de passarinhos e a
beleza da paisagem. Isso alivia a gente (Depoimento de Davi Hipólito da
Silva, trabalhador rural, morador de Areado, 53 anos de idade, cujo pai foi
deslocado pela represa de Furnas. Depoimento colhido pelo autor em 16
de maio de 2010. 1 fita cassete. 60 minutos).
Na minha infância era comum a família toda sair para pescar, minha
avó à frente. Quase todo domingo a gente passava no Porto, fazia arroz
com peixe e salada, duas, três famílias juntas. O lago de Furnas me dá
saudade da infância (Depoimento de Daniel de Castro Barbosa, morador
de Alfenas, comerciante, 35 anos de idade, colhido pelo autor em 1
o
de
julho de 2010. 1 fita cassete. 60 minutos).
Estas lembranças indicam que, ao contrário de muitas pessoas mais velhas, os
jovens começaram a se aproximar do lago de Furnas na medida em que ele se tornou
espaço privilegiado de lazer – lugar de nadar, namorar, fazer piqueniques, pescar, brincar
carnaval. As águas de Furnas e as paisagens da orla transformaram-se em reserva de beleza
e vida saudável. Espaço valorizado pelos turistas como retiro temporário da grande cidade,
necessário à restauração das pessoas desgastadas pelos excessos da vida moderna (THOMAS,
1989; URRY, 2002).
Outro elemento deste processo de apropriação do lago de Furnas é a religiosidade
popular. As festas religiosas tradicionais foram reelaboradas tendo em vista as novas paisagens
regionais. Uma dessas festas, cujas origens são de 1950, é a Festa de São Pedro, em Fama.
Festa de pescadores do Rio Sapucaí que incluía uma procissão fluvial, realizada algumas
vezes antes da formação do lago. A partir de então, o centro da Festa de São Pedro tornou-se
a procissão fluvial noturna. Veja-se notícia publicada em Alfenas:
A cada ano a festa fica melhor e atrai mais gente a Fama. O fluxo de visitantes
nos dias de festa só pode ser comparado ao do Carnaval. Há quem diga até
que a Festa de São Pedro recebe mais turistas do que a festa profana. O
momento mais esperado é a procissão fluvial, com participação de dezenas
de embarcações enfeitadas e iluminadas com luzes coloridas. Há também a
queima de fogos de artifício (Jornal dos Lagos, 28 de junho de 2008, p. 16).
356 Martins
Ambiente & Sociedade
Mais recente é a Festa de São João em Barranco Alto e envolve os moradores de
Harmonia e Areado. Sobre a última edição dessa festa, o Portal Alfenas noticiou o seguinte:
Será realizada no dia 27 de junho uma barqueata em louvor ao padroeiro
do bairro rural do Barranco Alto – São João. A saída está prevista para
as 8 horas do porto da balsa da Harmonia com destino a Barranco Alto.
Cerca de 20 barcos devem participar da travessia. A chegada no bairro
está programada para as 12 horas, quando irá começar a missa (Portal
Alfenas, 17 de junho de 2010. Disponível em www.portalalfenas.com.br.
Acesso em 10 de julho de 2010).
Tudo isto significa que, gradativamente, os moradores da região reelaboraram
suas referências simbólicas e redes de relações sociais em torno do “Mar de Minas”,
superando os sentimentos de perda e sofrimento tão característicos da década de 1960.
4
Os
moradores mais jovens passaram a se orgulhar das belezas paisagísticas do lago de Furnas,
da simplicidade, tranquilidade e hospitalidade dos núcleos urbanos lindeiros, aprenderam a
valorizar a combinação de sol, água e verde. Para eles, a geografia lacustre de Furnas, soberba,
delicada e variada, evoca imagens românticas, repletas de atrativos pictóricos e de sonhos
– é um “cartão postal”, que não difere das concepções modernas das arcádias (SCHAMA,
1996).
5
A imagem da represa passou a ser de uma natureza aprazível e muitos acreditaram,
então, no slogan publicitário: “a vida passa pelo lago de Furnas”.
6
Assim, para os valores
de amenidade associados ao “Mar de Minas” a unidade social foi-se transferindo.
7
Este
processo – sobreposto aos impactos fortes e duradouros da represa de Furnas sobre o meio
regional, que tenderiam por si sós a metamorfoseá-la em “paisagem natural” – reorganizou o
imaginário geográfico e as referências culturais dos grupos sociais que vivem na região. A tal
ponto que as percepções se inverteram: hoje, sofrimento é ver o lago de Furnas com baixos
níveis de água. É o que mostram as duas matérias jornalísticas seguintes:
Onde antes só se avistava água, agora há uma paisagem verde e, em alguns
lugares, terra seca. Apenas os antigos cursos d’água persistem. Por um lado,
diante da atual paisagem, é possível deslumbrar o passado, quando a região
não tinha o lago. Por outro, todos sofrem com a imagem da água secando
(Jornal dos Lagos, n. 1525, 9 de outubro de 1992, p. 12).
A imagem do lago cheio é ainda mais bela num dia claro, o azul da água
contrasta com o verde das margens, é possível até mesmo ver Fama ao
fundo, além de outros encantos da natureza. Olhar o lago de Furnas em
qualquer época é bom. Sem ameaça de seca, então, é ainda melhor (Jornal
dos Lagos, n. 1994, 21 de julho de 2004, p. 1).
Não se trata, porém, de uma simples harmonização das dinâmicas sociais, territoriais
e ambientais. Ao contrário, novos conflitos continuam a surgir em torno da represa. Para
Acserald (2004), conflitos socioambientais se estabelecem tanto pelo controle material de um
recurso, quanto por sua forma de uso, e envolvem grupos sociais com modos diferenciados
de apropriação e significação do território. A trajetória do turismo na região demonstra a
complexidade da situação.
8
Até os anos 1980, poucas pousadas existiam na orla do lago de
Furnas. Também não eram comuns lanchas, escunas, chalanas e jet-skis. Esta situação, no
entanto, mudaria na década de 1990. A privatização da orla da represa ganhou ímpeto graças
ao crescimento do número de casas de veraneio, condomínios à beira da água, marinas e
pousadas. Hoje, segundo dados da ALAGO (Associação dos Municípios do Lago de Furnas),
existem 260 empreendimentos turísticos, entre hotéis, pousadas, clubes náuticos e pesqueiros.
Deste avanço do turismo dá indicação a matéria publicada em revista especializada:
Furnas se tornou uma espécie de Angra dos Reis de Minas Gerais (...).
O cenário [de Capitólio] é de arrancar exclamações de todo mundo que
chega lá (...). Nos dias mais movimentados, as lanchas chegam a fazer fila
no cânion, à espera da vez de entrar debaixo da queda d’água. Lembra as
concentrações de verão na Praia do Dentista, em Angra (Revista Náutica,
n. 256, dezembro de 2009, p. 47).
O depoimento de Ilma Luiza Generosa Alexandre oferece denúncia contundente do
processo recente de privatização da orla do lago:
Ainda gosto [de Fama], mas não como antes. Porque antes a gente andava
em qualquer parte da beirada da lagoa, ia a todo lugar, nadava onde
quisesse. Não tinha cerca nem casa encostada na água. Hoje a beirada
tem dono, sobrou só um pedacinho na frente da igreja. E quem vai nadar
ainda tem que tomar cuidado com as lanchas (Depoimento de Ilma Luiza
Generosa Alexandre).
Como em distintas regiões do país onde foram construídas grandes represas, seja para
geração de eletricidade ou para o abastecimento de áreas metropolitanas (LEONEL,1998;
HOEFFEL et al., 2008), muitos conflitos socioambientais perpassam o espaço regional
transformado pela construção da hidrelétrica de Furnas. Conflitos que configuram trade
offs para os sujeitos sociais envolvidos e mobilizam disputas concernentes a três variáveis
principais, a saber: a) o deplecionamento do reservatório em função das necessidades de
geração de eletricidade; b) a qualidade e a disponibilidade da água; c) o retorno econômico
para a região de lucros operacionais da Usina de Furnas. A Tabela 1 sintetiza os principais
conflitos no decorrer do período 1963-2009:
Tabela 1.
Conflitos de uso das águas de Furnas – 1963-2009.
Atores coletivos Interesses/ações
Furnas Eficiência máxima na produção de energia
Contenção de investimentos na região
Prefeituras Abastecimento de água
Maximização de royalties e compensações financeiras
Diluição de efluentes (esgotos)
Investimentos de Furnas nos municípios lindeiros
Fazendeiros Aproveitamento agropecuário das margens do lago
Uso da água para irrigação e dessedentação de rebanhos
Extensão de cercas de divisas
Liberdade de uso de adubos e defensivos
Donos de casas nas margens Domínio das margens
Qualidade da água do lago
Empresários de turismo Manutenção de cota mínima para o nível da água no lago
Domínio das margens
Qualidade da água do lago
Fonte: Elaboração do autor.
Atores coletivos Interesses/ações
Pescadores Acesso desimpedido ao lago
Qualidade da água
Ampliação da quantidade e diversidade do pescado
População em geral Acesso livre ao lago e suas margens
Transporte de pessoas e mercadorias através do lago
Qualidade e salubridade da água do lago
Infraestrutura e equipamentos para lazer no lago
Fonte: Elaboração do autor.
É, pois, diante da incontornável presença de Furnas e no âmbito de uma dinâmica
complexa de conflitos territoriais e ambientais que os moradores de Alfenas e Fama
reconstroem as percepções do espaço regional e, simultaneamente, reelaboram a memória
coletiva assentada nos lugares, contam e recontam suas experiências vividas.
5
O lago de Furnas nas páginas da imprensa alfenense
As alterações nas percepções do lago de Furnas ocorreram pari passu às mudanças
na maneira dos jornais locais produzirem matérias sobre a represa. Em uma interação que
engendra certa circularidade dos temas, informações e pontos de vista, os jornais de Alfenas
alimentaram (e foram alimentados pelos) novos sentimentos surgidos nas camadas populares
e nas elites letradas da região. As páginas do Jornal dos Lagos ilustram esse processo. A
Tabela 2 dá ideia da variação intertemporal dos assuntos referentes a Furnas no jornal:
Tabela 2.
Matérias sobre o lago de Furnas – Jornal dos Lagos (1984-1999).
Matérias Número anual de matérias
84 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99
Variação do nível do lago 1 2 - - - - - - - 1 - - - 2 7
Afogamentos - - 1 1 2 4 5 5 - 6 - - 2 2 -
Turismo - - 3 1 4 3 - - - - 2 3 - - 2
Associação dos Municípios
- - 3 - - - - - 1 1 3 - - - 1
Impactos da formação do lago 3 2 - 2 4 - - - - - - 1 - - -
Lazer no lago - 2 - 1 3 5 - - - - - 1 - - -
Poluição no lago (esgotos) - - 1 1 - 1 1 1 2 - 1 1 2 - 1
Royalties
de Furnas - - - - 1 - - - - 4 1 1 2 2 1
Peixamento do lago - - - - 1 - - - 2 1 1 - - - -
Pescadores × Polícia - 2 - 1 2 2 8 3 - 2 - - 5 1 1
Problemas ambientais - - - - - 1 1 2 - 1 - - - 1 2
Educação/ação ambiental - - - - - 1 1 2 1 - - 1 - - 1
Transporte fluvial - - 1 - - 1 - - 1 - - - 1 - -
Ações/investimentos de Furnas - - - - - - - 3 2 1 1 - - 1 -
Piscicultura - - - - - - - - 1 1 1 - 2 1 2
Reflorestamento da orla - - - - - - - - - - 1 - - 1 1
Oleiros × pecuaristas ou polícia - - - - 2 - - - - - - 1 - - -
Crítica à privatização de Furnas - - - - - - - - - - - - - - 3
Fonte: Jornal dos Lagos, edições de 1984 a 1999.
Tabela 1.
Continuação...
A análise da tabela anterior permite inferências importantes. A primeira delas é que
a cobertura do jornal ficou mais densa e diversificada após 1992-1993. A partir desses anos,
maior número de temas ganhou as páginas do jornal, anteriormente concentrado em noticiar
afogamentos, prisões de pescadores e eventos de lazer no lago. Outra inferência diz respeito
ao deslocamento da atenção editorial para as questões do aproveitamento econômico do
reservatório de Furnas, bem como para os retornos financeiros da usina para as cidades da
região. Permanece a preocupação com o desenvolvimento do turismo e a ela se juntam as
matérias sobre royalties, piscicultura e coordenação política das reivindicações endereçadas
a Furnas Centrais Elétricas. Finalmente, na década de 1990 desapareceram as matérias sobre
impactos negativos da formação da represa. O jornal se volta para as possibilidades criadas
pelo surgimento do “Mar de Minas”.
Esta mutação é anunciada claramente por matéria publicada em fins de 1989, na
qual se lê:
Na formação do lago, as cidades atingidas perderam terras produtivas,
muita gente ficou doente, perdeu a vontade de viver e apenas ficou
olhando a água tomar tudo. Mas agora, com incremento ao turismo,
Furnas parece devolver o que tirou. Por causa da água estas cidades estão
sendo procuradas por pessoas interessadas em curtir o sol à beira do lago
(Jornal dos Lagos, n. 546, 16 de dezembro de 1989, p. 8B).
Já a matéria seguinte exemplifica a percepção positiva do “Mar de Minas” que
caracteriza a linha editorial do jornal na década de 1990, e que se mantém inalterada:
Todos os que estão próximos do lago de Furnas estão preocupados com a
possível privatização de Furnas Centrais Elétricas. O lago se transformou
numa fonte de renda para muitos os que exploram o turismo com
pesqueiros, pousadas, passeios, etc. Uma liminar na Justiça suspendeu
temporariamente a privatização de Furnas (Jornal dos Lagos, n. 1493, 12
de junho de 1999, p. 10).
No mesmo diapasão está a notícia sobre a criação de peixes no lago de Furnas:
A central de alevinos de Alfenas está em fase final de construção. Localizada
no Barranco Alto, ela possui 21 tanques escavados, laboratório de
reprodução artificial de peixes e uma fábrica de ração. Esta é praticamente
a primeira iniciativa bem sucedida no sentido de valorização e melhor
aproveitamento da represa (Jornal dos Lagos, n. 1416, 22 de agosto de
1998, p. 9).
Examinadas em detalhe, as matérias dos anos 1990 sobre o lago de Furnas no jornal
alfenense mesclam referências à beleza da região com considerações sobre o proveito
prático dos recursos existentes. O tom geral é o de realçar as virtudes do uso econômico da
natureza e das tradições regionais, com o objetivo de promover a integração da região nos
circuitos de negócios nacionais e internacionais. Representações associadas ao que Logan
e Molotch (1992) chamaram de “máquina de crescimento”: a constituição de uma aliança
de interesses públicos e privados, com sólida penetração nas mídias, que busca estimular
a expansão urbana e atrair pessoas e empreendimentos para determinado local ou região.
Tudo em nome da geração de impostos, empregos, renda e lucros, principalmente por meio
dos setores turístico, imobiliário e comercial. Entra em cena, dessa forma, a imagem da
represa como natureza mercantilizada. Para os homens de imprensa de Alfenas, a aceitação
dessa perspectiva seria o coroamento da história das relações entre a população e o lago de
Furnas, como sugere a matéria sobre piscicultura:
Até pouco tempo o que a população fazia era reclamar. Afinal muita
terra foi inundada pela represa de Furnas. Depois veio a fase de somente
aproveitar o lago sem qualquer cuidado para a sua preservação. [...] Agora
a realidade é outra, o lago pode se transformar numa imensa fonte de lucro
(Jornal dos Lagos, n. 1264, 15 de fevereiro de 1997, p. 13).
Convém frisar que não há descontinuidade absoluta entre as percepções do lago de
Furnas como natureza aprazível e natureza mercantilizada. A segunda incorpora a primeira,
embora ao custo de um deslocamento: a ênfase no “valor de troca” mais do que no “valor de
uso”. A natureza aprazível refere-se à paisagem (de beleza mitificada) como campo para o
gozo da vida, impregnada de subjetividade e afeita ao cotidiano, vizinhança, co-presença e
livre-fruição. A natureza aprazível é para ser apropriada. A beleza da paisagem e seu potencial
restaurador não desaparecem da percepção natureza mercantilizada, mas são subordinados
ao poder de consumo (que gera segregação do espaço) e à razão instrumental (que rebaixa
a importância do vivido na relação com a paisagem). A natureza mercantilizada – com sua
beleza, tranquilidade, “ar puro”, “verde” – é para virar propriedade.
6
Considerações finais
Para a maioria dos antigos moradores da região, especialmente os ligados à
agropecuária praticada nas vargens do Sapucaí e seus afluentes, as águas do lago de Furnas
inundaram os espaços mais valorizados econômica e socialmente. Para eles, a construção da
represa destruiu a “natureza” criada por Deus e o modo de vida tradicional, produziu perdas
e sofrimentos, ruínas e deslocamentos forçados, ameaçando os laços sociais e identidades
típicas de lugares que giravam em torno das roças e pastos. O lago pareceu-lhes uma obra
funesta.
Nem todos, porém, pensaram assim. Houve segmentos da população, vinculados
aos setores de comércio e serviços, que aceitaram o projeto hidrelétrico. Os moradores mais
jovens, nos anos 1970 e 1980, fizeram do lago de Furnas espaço de lazer, de sociabilidade,
de descanso em “contato com a natureza”. Estas novas gerações naturalizaram o lago de
Furnas, tornando-o parte destacada do seu imaginário geográfico. O espelho d’água de
Furnas apresentou-se para elas como natureza aprazível, emblema de pertencimento ao Sul
de Minas, “cartão postal” e “patrimônio natural” comum de diversas cidades. Os empresários
do turismo souberam reforçar e explorar estas imagens, notadamente a partir da década de
1990.
Estas representações do lago de Furnas convivem, não sem tensões e incongruências,
com outro conjunto mais recente de imagens. A partir dos anos 1990, empresários, técnicos
governamentais e agentes políticos municipais começaram a enxergar as águas da represa
sob a ótica da utilidade econômica. O “Mar de Minas” é, nessa perspectiva, oportunidade
para negócios públicos e privados e fonte de recursos oriundos de políticas ambientais de
cunho estadual e nacional. Uma natureza mercantilizada, um diferencial regional capaz
de propiciar inserção vantajosa para o Sul de Minas na era da “economia verde” e dos
“mecanismos de desenvolvimento limpo”.
Todos os conjuntos de percepções apontados compartilham o fato de serem simplistas,
no sentido de não compreenderem o meio ambiente e as paisagens de maneira abrangente,
como interação complexa de configurações sociais, biofísicas, políticas, filosóficas e culturais
(REIGOTA, 2002). Por conseguinte, além de ampliar a possibilidade de usos inadequados
do reservatório de Furnas e de seu entorno, estas percepções, em função de sua relativa
estreiteza, dificultam o diálogo entre os diversos atores envolvidos na construção do espaço
regional. Assim, o encaminhamento dos conflitos ambientais, que requer a busca de
consensos sobre as maneiras de lidar conjuntamente com as paisagens e de melhor gerenciar
o território (ACSERALD, 2004), especialmente no que se refere ao uso da água e do solo,
termina obstaculizado.
Evidentemente, a construção da Usina de Furnas deixou, em pessoas que vivenciaram
o processo, lembranças inesquecíveis e dolorosas. Hoje anciãs, elas ainda vivem esta dor no
presente. Mas, para os mais novos, o espelho d’água é apenas um lugar para curtir ou um
campo de negócios. Suas percepções já não abrangem o fato preciso, político e econômico,
que gerou o lago e muitos dramas humanos. Seria pertinente recuperar o fato para seguir
reelaborando percepções referentes ao “Mar de Minas”.
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Notas
1
O emprego de depoimentos publicados em jornal se justifica porque o roteiro das entrevistas feitas
pelo repórter, apreensível na leitura das matérias, tem similaridade com o roteiro usado nas entrevistas
realizadas diretamente pelo pesquisador.
2
O Alfenense
, 24 de fevereiro de 1957, p. 1. A peça citada é de autoria de Waldir de Luna Carneiro e foi
encenada pela primeira vez em junho de 1957, no Centro Católico de Alfenas. Em agosto do mesmo
ano, a peça foi apresentada no VI Festival Universitário de Arte, no auditório do Colégio Izabela
Hendrix, em Belo Horizonte, alcançando grande sucesso (O Diário, 13 de setembro de 1957). A peça
pode ser encontrada em CARNEIRO (2008, p. 53-85).
3
Em sua campanha presidencial, Jânio Quadros esteve em Alfenas. Jânio prometeu a construção de
estradas asfaltadas para suprir a extinção dos ramais da Rede Mineira de Viação. Essas estradas – atuais
BR-369 e BR-491 – só foram precariamente concluídas na década de 1970. A cidade de Fama, vinte
anos após o lago, tinha apenas um telefone, a energia vinha de um motor, as estradas não tinham asfalto
(VIEIRA, 2002, p. 45).
363
Olhares sobre o “Mar de Minas”: percepções dos moradores de Alfenas e
Fama relativas ao lago de Furnas (1963-1999)
Ambiente & Sociedade
■ Campinas v. XIII, n. 2 ■ p. 347-363 ■
jul-dez. 2010
4
Conforme Ilda Alexandre, no início dos anos 1970, “na Fama os mais velhos só xingavam a represa,
falavam ‘essa porcaria’”.
5
Vale lembrar que, “[...] quando uma determinada ideia de paisagem, um mito, uma visão, se forma num
lugar concreto, ela mistura categorias, torna-as metáforas mais reais que seus referentes, torna-se de
fato parte do cenário [...]” (SCHAMA, 1996).
6
Este foi o slogan da campanha de lançamento, em meados dos anos 1980, do Balneário Furnastur,
localizado em Formiga, uns dos primeiros grandes empreendimentos turísticos na orla da represa.
7
Por “valores de amenidade” pode-se entender conjunto de bens não-materiais que refletem a qualidade
de vida, relacionados a características naturais e atributos gerados pela própria sociedade que afetam
positiva ou negativamente a satisfação dos indivíduos (MAY et al., 2003).
8
A expansão do capital, seja por meio da mineração, das indústrias intensivas em recursos naturais ou
do turismo, aprofunda a apropriação assimétrica da natureza, implicando em restrições de vida para os
grupos que se encontram em posições mais vulneráveis (MASSEY, 2000).
Ambiente & Sociedade
■ Campinas v. XIII, n. 2 ■ p. 443-454 ■
jul.-dez. 2010