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Origem do lago de Furnas.
Origem do lago de Furnas.

Origem da construção da Usina de Furnas

 

Conta a história que foi o engenheiro da Cemig Francisco Noronha quem descobriu as Corredeiras das Furnas, quando saiu para pescar a convite da família Mendes Júnior. Era sabido que a Cemig já procurava no Rio Grande um lugar ideal para construir uma usina. Diante de um cânion longo e profundo, o engenheiro, impressionado, tirou fotos, desenhou barragens sobre as mesmas, calculou a profundidade do reservatório e, em Belo Horizonte, apresentou seus estudos ao engenheiro John Reginald Cotrim, então vice-presidente da Cemig e futuro presidente de FURNAS.  

Cotrim verificou pessoalmente o local e chegou à conclusão que estava diante de um potencial que permitiria a construção de uma usina de grande porte para atender os três principais centros socioeconômicos do país: São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, evitando assim o colapso energético que ameaçava o país.  

Em 1955, Cotrim passou a integrar a equipe de governo de Juscelino Kubstchek, que em 28 de fevereiro de 1957, assinou o decreto 41.066 e criou uma das maiores obras do seu governo: a Central Elétrica de Furnas, com sede em Passos, Minas Gerais.

 

 

Olhares sobre o “Mar de Minas”:
percepções dos moradores de
Alfenas e Fama relativas ao
lago de Furnas (1963-1999)
Marcos Lobato Martins

 Introdução

Na história, os corpos d’água desempenharam múltiplos papéis: mataram a sede de

aldeias e cidades, de homens, rebanhos e lavouras, serviram como fronteiras de províncias,

impérios e estados nacionais, ofereceram orientação geográfica para viajantes e colonos,

canais de transporte e comunicação para regiões interioranas, dotaram de força hidráulica

fazendas, indústrias e núcleos urbanos. Isto requereu construir diversos tipos de “objetos

técnicos”. Conforme assinalou Milton Santos (1997, p. 186):

A história das chamadas relações entre sociedade e natureza é, em todos

os lugares habitados, a da substituição de um meio natural, dado a uma

determinada sociedade, por um meio cada vez mais artificializado, isto é,

sucessivamente instrumentalizado por essa mesma sociedade. Em cada

fração da superfície da Terra, [...] a parte do “natural” e do “artificial”

também varia, assim como mudam as modalidades do seu arranjo.

No Brasil, os corpos d’água primeiro foram vistos e apropriados como meios de

penetração colonial e vias de transporte de mercadorias e passageiros, especialmente nos

séculos XVIII e XIX. A propósito, é bastante conhecida a obra de Sérgio Buarque de Holanda

(1976) a respeito da rota fluvial que, no século XVIII, interligava São Paulo com as minas

de Cuiabá. Em Minas Gerais, nos Oitocentos, diversos planos governamentais propuseram

articular a navegação fluvial a vapor com ferrovias e estradas carroçáveis (GODOY;

BARBOSA, 2007; MARTINS, 2010). Entre as décadas de 1870 e 1920, os rios passaram

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a representar vetores privilegiados para projetos ferroviários, mas também obstáculos que

interrompiam as linhas de trem e as estradas carroçáveis, exigindo a construção de pontes.

A partir dos anos 1930, o que chamou a atenção dos governos, técnicos e empresários foi o

potencial de energia elétrica que os rios poderiam fornecer (ARRUDA, 2008). As barragens

das usinas hidrelétricas transformaram drasticamente as paisagens dos rios, na medida em

que promoveram grande “reorganização do natural”, fruto de intervenções humanas de

enorme monta (WORSTER, 2003). Elas modificaram a gestão do território em função de

planos de eletrificação e geraram conflitos envolvendo governos, empresas, populações

tradicionais e organizações ambientalistas.

A primeira grande usina hidrelétrica brasileira surgiu no início da década de 1960,

aproveitando o potencial energético do Rio Grande. Trata-se da Usina de Furnas, situada

no Sudoeste de Minas Gerais. Seu imenso reservatório tem 23 bilhões de metros cúbicos

de água, superfície de 1.457 km², perímetro de 3,7 mil km (equivalente a quase metade da

extensão da costa brasileira) e profundidade média de 13 m.

Esse lago artificial é o objeto deste trabalho.

Pretende-se examinar as variações nas percepções relativas ao lago de

 

Furnas dos moradores das cidades de Alfenas e Fama, dois dos municípios mais afetados

 

pela barragem, desde o início do enchimento do reservatório, em 1963, até os anos 1990. A

 

abordagem é eminentemente qualitativa.

 

Yi-Fu Tuan (1980, p. 4) define percepção como “[...] a resposta dos sentidos aos

 

estímulos externos, atividade proposital na qual certos fenômenos são claramente registrados

 

enquanto outros são bloqueados [...]”. Uma pessoa, ao percorrer e vivenciar um determinado

 

espaço atribui a este um valor, que pode evoluir para um sentimento no qual o espaço,

 

diferenciado, torna-se um lugar. Percepções ambientais remetem a relações mais afetivas com

 

o espaço, carregando marcas das trajetórias, valores, atitudes, visões de mundo e interesses

 

dos indivíduos e grupos sociais (TUAN, 1980). P. Rodaway (1995) refere-se a percepções

 

como sensação, influenciadas pelos órgãos dos sentidos, e a percepções como cognição,

 

resultantes de concepções mentais. Dessa forma, ideias sobre o ambiente envolvem tanto

 

respostas a impressões, estímulos e sentimentos, mediados pelos sentidos, como também

 

processos mentais relacionados a experiências, associações conceituais e condicionamentos

 

culturais. Por isso, as percepções ambientais atuam como guias para a ação, orientando

 

práticas e relações sociais de sujeitos que lutam para dar sentido ao mundo e nele encontrar

 

seu lugar. Como escreveu T. Ingold (2000), as ações humanas sobre o ambiente, os usos e as

 

atividades produtivas que ocorrem em dado local, bem como sua trajetória intertemporal,

 

são determinadas por distintas formas de perceber o mundo natural e as paisagens.

 Simon Schama (1996), ao realçar as dimensões simbólicas das paisagens e sua

 produção social, considera que as visões do ambiente comportam lembranças, mitos e

 significados complexos, de modo que ambiente e percepção são inseparáveis. Nas palavras

 do autor, deve-se “[...] reconhecer que é nossa percepção transformadora que estabelece

 a diferença entre matéria bruta e paisagem [...]” (SCHAMA, 1996, p. 20). A paisagem,

 portanto, é obra da mente e está relacionada com “persistentes e inelutáveis obsessões”

 socioculturais, que conformam “tradições paisagísticas” capazes de moldar instituições

e expressar as virtudes de comunidades políticas ou sociais. Assim, por exemplo, “[...] a

identidade nacional [...] perderia muito de seu fascínio feroz sem a mística de uma tradição

 

 

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Olhares sobre o “Mar de Minas”: percepções dos moradores de Alfenas e

Fama relativas ao lago de Furnas (1963-1999)

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paisagística particular: sua topografia mapeada, elaborada e enriquecida como terra natal

[...]” (SCHAMA, 1996, p. 26).

Nessa perspectiva, pretende-se analisar a trajetória das percepções relativas ao

lago de Furnas, cuja historicidade revela algo a respeito das formas de relacionamento e de

apropriação da represa por parte dos moradores das localidades lindeiras. As fontes empregadas

neste trabalho são textos de memorialistas, notícias de jornais locais e testemunhos de

moradores de Alfenas e Fama. Os memorialistas e as páginas dos jornais possibilitam abordar,

sobretudo, as representações produzidas e difundidas pelas camadas letradas da população

regional, cuja influência na formação da “opinião pública” e nas políticas municipais não

se pode subestimar. As entrevistas permitiram recolher posicionamentos de outros tipos

de sujeitos, pessoas desalojadas pela represa e gente simples que, na infância ou no início

da vida adulta, se deparou com o lago de Furnas na condição de elemento definitivo do

espaço regional. Algumas entrevistas foram realizadas no âmbito desta pesquisa, enquanto

outras foram publicadas em número especial do Jornal dos Lagos, por ocasião dos 50 anos

de Furnas. São depoimentos de pequenos proprietários e comerciantes, trabalhadores rurais

e donas de casa, servidores públicos e indivíduos reconhecidos por suas comunidades como

“guardiães da história” local.

 

1

 

2

A população, os rios e as várzeas na bacia do Sapucaí

O Rio Sapucaí percorre terras de São Paulo e Minas Gerais. Suas nascentes estão

situadas na Serra da Mantiqueira, próximas a Campos do Jordão. O rio, após fluir no território

de Minas Gerais por mais de 400 km, deságua no Rio Grande. No povoado de Pontalete, em

Três Pontas, o Rio Sapucaí recebe as águas do Rio Verde. A área drenada pela bacia do Sapucaí

abrange 40 municípios do Sul de Minas, alcançando cerca de 8.800 km

2

. Os principais afluentes

do Sapucaí, além do Rio Verde, são os Rios Cervo, Dourado, Lourenço Velho, Mandu, Sapucaí

 

Mirim, Turvo, Vargem Grande, Machado, Peixe e Cabo Verde (MAGALHÃES JunioR;

 

DINIZ, 1997). Os rios da bacia possuem leitos sinuosos e bom volume de água, e neles há

 

muitas cachoeiras e corredeiras. A partir da Serra da Mantiqueira, na direção noroeste, as

 

terras drenadas pela bacia do Sapucaí compõem planaltos sucessivos escalonados em “degraus”.

 

A topografia predominante é íngreme, o que não favorece a agricultura. A vegetação original

 

era de mata atlântica e araucária (porção leste da bacia) e cerrado (porção oeste), mas foi

 

substituída em grande parte por pastagens. Durante o ano, dominam temperaturas amenas,

 

com valores médios entre 18 e 22 °C. A precipitação média anual é inferior a 1500 mm,

 

podendo ocorrer um ou dois meses sem chuva (INSTITUTO..., 1977).

 

Desde o século XIX, a zona do Sapucaí adquiriu destaque na produção de

 

abastecimento interno, dedicando-se à criação de gado e de porcos, às lavouras de milho,

 

feijão, arroz, fumo, algodão, e à produção de queijos, toucinho, doces, rapadura, açúcar,

 

aguardente e panos. Os mercados do Rio de Janeiro e São Paulo absorveram a maior parte

 

das exportações regionais (LENHARO, 1979; LIBBY, 1988). Estas atividades aproveitavam

 

as áreas de várzeas, de modo que as “baixadas” ribeirinhas eram os terrenos mais valorizados.

 

No final do século XIX, o café começou a ocupar terrenos de encostas em diversos pontos

 

do Sul de Minas (FILLETO; ALENCAR, 2001).

 

 

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Uma indicação da importância das várzeas na bacia do Sapucaí é fornecida pelo

memorialista Murilo Lambert (1977, p. 8-9):

O sítio do meu avô era banhado pelo Rio das Antas [afluente do Sapucaí

Mirim] na parte das vargens, onde todo ano se plantavam arrozais. O rio

derramava suas águas na época das chuvas, alagando as vargens de todas

as propriedades do município. [...] Quando a enchente acabava, os arrozais

viçavam e amadureciam. Depois vinha a safra do arroz, carros de bois subindo

e descendo os vargedos, transportando o arroz com casca para a cidade.

Na mesma direção vão os testemunhos de Normando Trindade de Moraes e de

Antônio Camilo da Silva Sobrinho:

Eu vim para Alfenas em 1951 para fazer um serviço de estudo de retificação

do Rio Cabo Verde. No período das cheias, o rio invadia aquelas várzeas

todas e causava muito prejuízo para as lavouras de arroz. O povo vivia

numa dependência grande do rio, porque plantava nas várzeas. As pessoas

também pescavam muito. Nadava-se pouco, pois o rio era perigoso

(Depoimento de Normando Trindade de Moraes, topógrafo, engenheiro,

ex-funcionário de Furnas, 78 anos de idade. Depoimento colhido pelo

autor em 05 de julho de 2010. 1 fita cassete. 90 minutos).

Meus pais eram pequenos proprietários em Tomé [Alfenas]. No Cabo

Verde a gente pescava. Havia também exploração de areia. Os areeiros

tiravam areia de dentro do rio com canoa e traziam para a cidade, onde

era usada principalmente no calçamento das ruas. Naquela época [anos

1950], usava plantar nas várzeas e fazer pasto nas encostas. Não tinha

plantação no seco. Arroz, milho, feijão, tudo era na beira do rio. Quando

as pastagens secavam, o gado era trazido para as várzeas (Depoimento de

Antônio Camilo da Silva Sobrinho, contabilista, jornalista, vereador em

Alfenas na década de 1970, 65 anos de idade. Depoimento colhido pelo

autor em 07 de maio de 2010. 1 fita cassete. 60 minutos).

Numerosos bairros rurais ficavam situados nas proximidades do Rio Sapucaí,

movimentados pela produção agrícola e pelo trânsito de boiadas que rumavam para as

estações da Rede Mineira de Viação e para o entroncamento ferroviário de Três Corações

(ROSA; SAES, 2010). Este era o caso de Barranco Alto, distrito de Alfenas, de Rochas,

povoado próximo de Fama, e de Itaci, distrito de Carmo do Rio Claro, onde havia grande e

afamado laticínio. Até a década de 1950, ainda transitavam no Sapucaí vapores transportando

mercadorias e passageiros, em percurso de 105 km entre os portos de Fama e Carrito, em

Carmo do Rio Claro (HORVÁTH, 2008).

3

A construção de Furnas: apreensões e resistências

Nos anos 1950, em função do avanço da industrialização e da urbanização no país, a

escassez de eletricidade tornou-se evidente. Indústrias e domicílios sofriam constantemente

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Fama relativas ao lago de Furnas (1963-1999)

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com interrupções do fornecimento e prolongados períodos de racionamento. Em Minas

Gerais, o tema da energia elétrica adquiriu centralidade nos governos Milton Campos

(1946-1950) e Juscelino Kubitschek (1951-1955). O planejamento do setor elétrico mineiro,

definido em 1951, enfatizava três pontos: a) a intervenção do governo na indústria de energia;

b) a preferência por grandes sistemas de usinas interligadas; c) projetos estrategicamente

orientados para a demanda industrial (DULCI, 1999, p. 93-105). Essa política energética,

executada pela CEMIG (Centrais Elétricas de Minas Gerais, criada em 1952), foi levada

para o plano federal durante a presidência de JK (1956-1960).

Em São Paulo, a imobilidade das empresas Light e American Force and Power levou o

governo estadual a investir, em 1953, em um Plano Estadual de Eletrificação. A intenção era

aproveitar o potencial energético dos Rios Tietê e Paranapanema, para o que inicialmente

se constituiu a hidrelétrica de Salto Grande por meio da empresa estadual USELPA (Usinas

Elétricas do Paranapanema), no período 1951-1958 (CENTRAIS..., 1989).

Nesse contexto, elaborou-se o projeto de construção da Usina de Furnas. Em fevereiro

de 1957, o Decreto 41.066 criou a Central Elétrica de Furnas, com sede em Passos (MG).

A construção da Usina de Furnas estendeu-se de 1958 a 1962. A usina, com capacidade de

1,216 milhão de kW, começou a funcionar em 1963. O reservatório de Furnas desapropriou

aproximadamente 5 mil propriedades e inundou cerca de 500 mil ha agricultáveis (Jornal

dos Lagos, n. 2269, 5 de maio de 2007, p. 2-3). Carmo do Rio Claro foi o município que mais

perdeu terras; Campo do Meio, Fama, Guapé e Boa Esperança perderam área urbana, bem

como os distritos de São José da Barra (pertencente a Alpinópolis, emancipado em 1994),

Santo Hilário (Pimenta) e Itaci.

Logo que surgiram as primeiras notícias sobre o projeto, as cidades da área ficaram

sobressaltadas. Carmo do Rio Claro, Guapé e Fama vivenciaram a construção de Furnas

como uma catástrofe. Depoimentos de antigos moradores dessas cidades indicam o

sofrimento causado por Furnas:

As águas alagaram as várzeas em que o povo plantava alho, arroz, feijão e

cobriram as árvores que davam lenha para os fogões. Alguns acharam muito

ruim perder as terras, mas reclamar de que jeito? As boiadas que passavam

diariamente pelos Rochas indo para Três Corações sumiram. Ir para Fama

ficou muito difícil. As festas minguaram. A jardineira que ligava Alfenas

a Paraguaçu, passando pelos Rochas, parou de circular. Acabou tudo.

(Depoimento de Sebastião Teodoro Rocha, morador de Fama, 89 anos de

idade, Jornal dos Lagos, n. 2269, 5 de maio de 2007, p. 5).

A cidade [Carmo do Rio Claro] só tinha lavoura de milho e arroz. Os

fazendeiros entraram na Justiça contra Furnas e alguns chegaram a armar

os empregados. Houve quem quisesse apossar dos fuzis do Tiro de Guerra.

Vieram 50 soldados do Exército de Pouso Alegre para retirar os que não

queriam sair de suas terras. Com a represa pronta, Carmo morreu, o povo

passou fome, muitos foram embora para Boa Esperança, Areado e Alfenas

(Depoimento de Pedro Ricardo de Carvalho, morador de Carmo do Rio

Claro, 66 anos de idade, Jornal dos Lagos, n. 2269, 5 de maio de 2007,

p. 4).

Na cidade de Guapé, liderados pelo vigário João Coining (que, de acordo com

matéria publicada no Jornal dos Lagos (n. 2269, 5 de maio de 2007, p. 8) dizia nas pregações

não ser pecado matar um “furneiro”), políticos locais e proprietários entraram na Justiça,

achincalharam os “furneiros”, ameaçaram-nos de morte, numa resistência que durou anos,

mas que se configurou ineficaz. Para acalmar parcialmente os ânimos, Furnas construiu

a nova Guapé (Jornal dos Lagos, n. 2269, 5 de maio de 2007, p. 8). Em Barranco Alto,

houve movimento contra Furnas liderado pelo pároco de Conceição da Aparecida, cujas

reivindicações eram: a) construção de nova igreja longe da orla da represa; b) instalação

de balsa para evitar que o lugar ficasse isolado; c) aumento das indenizações pagas aos

moradores que perderam terras e benfeitorias (cf. depoimento de Antônio Camilo da Silva

Sobrinho ). Apenas a reivindicação da balsa foi atendida prontamente. A construção

da nova igreja só ocorreu nos anos 1970 (cf. depoimento de Normando Trindade de

Moraes).

Em 24 de fevereiro de 1957, o jornal O Alfenense noticiava a agitação na cidade por

causa do decreto de criação de Furnas:

Aqui em Alfenas são realizadas reuniões e concentrações para discutir

os problemas que advirão com a construção da represa. Há um clima

de incertezas, de exaltação, quase de revolta. Até aos palcos a discussão

chegará em breve. O grupo de teatro “Carvalho Júnior” começou a ensaiar

a peça “Na boca das furnas”, um fiel retrato da vida interiorana que,

subitamente, se vê em face da técnica e do gigantismo industrial. 

Os depoimentos seguintes mostram que as opiniões na cidade ficaram divididas entre

“interesses urbanos” e “interesses rurais”, os primeiros mais preocupados com os efeitos de

modernização do comércio e dos serviços e os segundos com a continuidade da rotina nas

unidades agropecuárias:

Quando chegaram a Alfenas as primeiras notícias sobre a construção de

Furnas, ficou todo mundo apavorado, vendendo terra. A maioria do povo

era contra, ninguém queria saber da represa. Os fazendeiros eram contra.

Mas os comerciantes esperavam lucrar com o movimento de Furnas. Eu

mesmo trabalhava na firma Engel & Irmãos, de material de construção,

que ganhou muito dinheiro (Depoimento de Antônio Camilo da Silva

Sobrinho).

Com Furnas, Alfenas mudou completamente. Ela tinha no máximo 20

mil habitantes e, então, começou a crescer. Aqui tiveram dois escritórios

de Furnas, um para estudos e outro para obras. Havia pelo menos 10

engenheiros, fora os topógrafos, técnicos, encarregados. O movimento 

de Furnas revolucionou a vida da cidade (Depoimento de Normando

Trindade de Moraes).

Os políticos não ficaram alheios às alterações provocadas por Furnas. Os do PSD,

partido de JK, apoiaram Furnas desde a primeira hora. O discurso por eles empregado era,

conforme Normando Trindade de Moraes, o do “progresso”:

Para aplacar a raiva do povo, dizia-se que o Brasil estava parando por falta

de energia elétrica. Basta dizer que em Alfenas, naquela época, a gente

não podia usar chuveiro elétrico porque a luz caía. A gente também dizia

que iam ser feitas estradas para compensar a estrada de ferro (Depoimento

de Normando Trindade de Moraes).

A UDN opunha-se ao projeto. Na região, a principal voz contrária a Furnas foi o

deputado federal Geraldo Freire, de Boa Esperança. Ele dizia que a usina era um absurdo,

um esbulho. Os discursos de Geraldo Freire, alguns pronunciados no Clube XV, em Alfenas,

reiteravam o mesmo argumento: “[...] onde já se viu inundar terras altamente férteis para

gerar eletricidade que de nada valerá para o bem-estar dos moradores da região? [...]” A

oposição udenista também dizia que a região ficaria isolada por causa da extinção do ramal

Varginha-Juréia (VIEIRA, 2002, p. 38-47). Porém, quando houve a mudança de governo,

com a chegada de Jânio Quadros à Presidência – que nomeou gente da UDN para a Central

Elétrica de Furnas – as críticas dos políticos udenistas da região cessaram. 

Um dos fatores que mais contribui para indispor Furnas a grandes parcelas das

populações da bacia do Sapucaí foi o problema das indenizações. Os afetados pelo enchimento

do lago receberam apenas o valor venal das terras alagadas. E os que “entraram em demanda”

tiveram depositado em juízo as indenizações calculadas pelas equipes do Departamento de

Patrimônio de Furnas, corroídas pela inflação crescente. A respeito das indenizações, dois

testemunhos são esclarecedores:

O pessoal de Furnas chegava e dava três alternativas: você podia aceitar

um valor com direito a desmanchar seu imóvel e pegar o material, você

podia deixar tudo para Furnas ou podia ir para a Justiça. Meu pai resolveu

amigavelmente, mas o dinheiro que recebeu por tudo nem deu para

construir outra casa (Depoimento de Ângelo Saksida, Jornal dos Lagos,

n. 2269, 5 de maio de 2007, p. 5).

A indenização não era o valor real da terra. Mas o dono recebia um preço

e podia usufruir da terra até a chegada da água. Aqueles que pegaram

logo o dinheiro se deram bem, mas aqueles que caíram na conversa de

advogado tiveram prejuízo (Depoimento de Marcos Coelho, proprietário

rural e oficial do Cartório de Registro Civil e Notas de Córrego do Ouro,

58 anos de idade, colhido pelo autor em 19 de abril de 2010. 1 fita cassete.

60 minutos).

O caso de Furnas permite relativizar o ponto de vista de Warren Dean (1996,

p. 281), para quem a “[...] ideia de desenvolvimento econômico penetrava a consciência da

cidadania, justificando cada ato do governo e de extinção da natureza [...]”. Os “caipiras” de

Alfenas, Areado, Carmo do Rio Claro e Fama não se deixaram seduzir pelo canto de sereia

do progresso. Neste aspecto, há contraste com a paulista Salto Grande. No Paranapanema,

segundo Eduardo Giavara (2007, p. 249), “[...] muitos acreditavam, veementemente, que a

cidade poderia, em poucos anos, se tornar um pólo industrial e gerar milhares de empregos

[...]”. No caso de Furnas, a formação do reservatório despertou inicialmente raiva e

ressentimento na maioria dos moradores. Sua imagem era de mar artificial funesto, evocando

tristeza e perplexidade, como mostra o testemunho de um deslocado pela represa:

Deus quando fez a terra colocou tudo no lugar certo, mar, montanha,

rio, vargem... Isto o homem não podia alterar. Nós não acreditávamos

na construção da represa, porque era um abismo cercar um rio como

aquele. Se estancasse o rio, ele ia embrabar, cobrir os baixos, os vargedos,

emporcalhar e criar mosquito. Quando vi aquele mar de água, foi só

recordação e mau humorismo. No Itaci, ficou tudo muito desusado

(Depoimento de Benedito Fialho, 79 anos de idade, natural de Itaci, onde

foi pequeno agricultor. Depoimento colhido pelo autor em 30 de junho de

2010. 1 fita cassete. 90 minutos).

Observe-se que, conforme o antigo agricultor, o lago de Furnas teria trazido a “água

pesada e grossa”, água “parada”, de má qualidade, que junta sujeira, taboa e lodo amarelo.

A água de Furnas contrastaria, portanto, com a “água pequena” (que corre entre árvores e

junta lodo verde), oriunda de nascentes e córregos, tradicionalmente tida como boa para

beber (GALIZONI, 2010).

Para muitos que vivenciaram o processo de construção de Furnas, as atitudes da

estatal até os anos 1980 reforçaram esta percepção negativa. Afinal, a postura de Furnas

foi pautada, de um lado, pela indiferença diante das reivindicações dos municípios lindeiros

e postergação do atendimento a demandas específicas; de outro lado, a estatal procurou

conter investimentos na região não associados à geração e transmissão de energia. A política

da empresa era, por assim dizer, de “negligência salutar”: o que não atrapalhasse a operação

da usina podia ser feito tanto na orla da represa, quanto com as águas do reservatório.

A incorporação do lago de Furnas à paisagem regional

Dissipado o choque inicial gerado pela hidrelétrica, lentamente surgiram mecanismos

de convivência com o lago de Furnas e estratégias de apropriação da orla e das águas. Papel

destacado coube às mulheres, aos jovens e às crianças, como bem ilustra o caso de Fama. O

testemunho de Ilma Luiza Generosa Alexandre sintetiza o que ocorreu:

Mudei para Fama em 1968. Praticamente todo dia eu descia para a praça

da Matriz e ia para a beira do lago lavar roupa. Lá na água eu encontrava

muitas outras mulheres. A gente conversava, cantava, trabalhava horas e

horas. A beira da represa em Fama virou ponto de encontro (Depoimento

de

Ilda Alexandre, 67 anos de idade, ex-funcionária da Prefeitura de Alfenas,

colhido pelo autor em 8 de abril de 2010. 1 fita cassete. 60 minutos).

O depoimento revela a incorporação espontânea do lago de Furnas ao cotidiano

dos moradores de Fama, Harmonia, Barranco Alto, Pontalete, Campo do Meio e Itaci,

tanto como local de atividades domésticas quanto como espaço cotidiano de sociabilidade.

Ainda conforme Ilma Alexandre, nessa época os moradores de Fama iniciaram o costume

de receber parentes e amigos, nos períodos de férias escolares, para nadar na represa.

A partir dos anos 1970, mais e mais pessoas da região passaram a frequentar diversos

pontos do lago em busca de lazer. Os jovens preferiram a cidade de Fama, os bairros rurais

dos Rochas e Harmonia, a Ponte das Amoras e os aterros na direção de Areado. Proliferaram

bares e restaurantes, sob a olímpica indiferença de Furnas. A prática da pescaria de lazer

também aproximou muitas pessoas da represa. Dois testemunhos ilustram essa forma comum

de utilização das águas de Furnas:

Nossa região é privilegiada pela natureza. Tem o lago de Furnas. Eu desde

rapazinho vou pescar com os amigos em Harmonia e Barranco Alto. O

lago é ideal para ir com a família, para ver muitos tipos de passarinhos e a

beleza da paisagem. Isso alivia a gente (Depoimento de Davi Hipólito da

Silva, trabalhador rural, morador de Areado, 53 anos de idade, cujo pai foi

deslocado pela represa de Furnas. Depoimento colhido pelo autor em 16

de maio de 2010. 1 fita cassete. 60 minutos).

Na minha infância era comum a família toda sair para pescar, minha

avó à frente. Quase todo domingo a gente passava no Porto, fazia arroz

com peixe e salada, duas, três famílias juntas. O lago de Furnas me dá

saudade da infância (Depoimento de Daniel de Castro Barbosa, morador

de Alfenas, comerciante, 35 anos de idade, colhido pelo autor em 1 ° de

julho de 2010. 1 fita cassete. 60 minutos).

 

 

Estas lembranças indicam que, ao contrário de muitas pessoas mais velhas, os

jovens começaram a se aproximar do lago de Furnas na medida em que ele se tornou

espaço privilegiado de lazer – lugar de nadar, namorar, fazer piqueniques, pescar, brincar

carnaval. As águas de Furnas e as paisagens da orla transformaram-se em reserva de beleza

e vida saudável. Espaço valorizado pelos turistas como retiro temporário da grande cidade,

necessário à restauração das pessoas desgastadas pelos excessos da vida moderna (THOMAS,

1989; URRY, 2002).

Outro elemento deste processo de apropriação do lago de Furnas é a religiosidade

popular. As festas religiosas tradicionais foram reelaboradas tendo em vista as novas paisagens

regionais. Uma dessas festas, cujas origens são de 1950, é a Festa de São Pedro, em Fama.

Festa de pescadores do Rio Sapucaí que incluía uma procissão fluvial, realizada algumas

vezes antes da formação do lago. A partir de então, o centro da Festa de São Pedro tornou-se

a procissão fluvial noturna. Veja-se notícia publicada em Alfenas:

A cada ano a festa fica melhor e atrai mais gente a Fama. O fluxo de visitantes

nos dias de festa só pode ser comparado ao do Carnaval. Há quem diga até

que a Festa de São Pedro recebe mais turistas do que a festa profana. O

momento mais esperado é a procissão fluvial, com participação de dezenas

de embarcações enfeitadas e iluminadas com luzes coloridas. Há também a

queima de fogos de artifício (Jornal dos Lagos, 28 de junho de 2008, p. 16).

Mais recente é a Festa de São João em Barranco Alto e envolve os moradores de

Harmonia e Areado. Sobre a última edição dessa festa, o Portal Alfenas noticiou o seguinte:

Será realizada no dia 27 de junho uma barqueata em louvor ao padroeiro

do bairro rural do Barranco Alto – São João. A saída está prevista para

as 8 horas do porto da balsa da Harmonia com destino a Barranco Alto.

Cerca de 20 barcos devem participar da travessia. A chegada no bairro

está programada para as 12 horas, quando irá começar a missa (Portal

Alfenas, 17 de junho de 2010. Disponível em www.portalalfenas.com.br.

Acesso em 10 de julho de 2010).

Tudo isto significa que, gradativamente, os moradores da região reelaboraram

suas referências simbólicas e redes de relações sociais em torno do “Mar de Minas”,

superando os sentimentos de perda e sofrimento tão característicos da década de 1960.

4

Os

moradores mais jovens passaram a se orgulhar das belezas paisagísticas do lago de Furnas,

 

da simplicidade, tranquilidade e hospitalidade dos núcleos urbanos lindeiros, aprenderam a

 

valorizar a combinação de sol, água e verde. Para eles, a geografia lacustre de Furnas, soberba,

 

delicada e variada, evoca imagens românticas, repletas de atrativos pictóricos e de sonhos

 

– é um “cartão postal”, que não difere das concepções modernas das arcádias (SCHAMA,

 

1996).

 

 

 

A imagem da represa passou a ser de uma natureza aprazível e muitos acreditaram,

então, no slogan publicitário: “a vida passa pelo lago de Furnas”.

 Assim, para os valores

de amenidade associados ao “Mar de Minas” a unidade social foi-se transferindo.

 Este

processo – sobreposto aos impactos fortes e duradouros da represa de Furnas sobre o meio

 

regional, que tenderiam por si sós a metamorfoseá-la em “paisagem natural” – reorganizou o

 

imaginário geográfico e as referências culturais dos grupos sociais que vivem na região. A tal

 

ponto que as percepções se inverteram: hoje, sofrimento é ver o lago de Furnas com baixos

 

níveis de água. É o que mostram as duas matérias jornalísticas seguintes:

 

 

Onde antes só se avistava água, agora há uma paisagem verde e, em alguns

lugares, terra seca. Apenas os antigos cursos d’água persistem. Por um lado,

diante da atual paisagem, é possível deslumbrar o passado, quando a região

não tinha o lago. Por outro, todos sofrem com a imagem da água secando

(Jornal dos Lagos, n. 1525, 9 de outubro de 1992, p. 12).

A imagem do lago cheio é ainda mais bela num dia claro, o azul da água

contrasta com o verde das margens, é possível até mesmo ver Fama ao

fundo, além de outros encantos da natureza. Olhar o lago de Furnas em

qualquer época é bom. Sem ameaça de seca, então, é ainda melhor (Jornal

dos Lagos, n. 1994, 21 de julho de 2004, p. 1).

Não se trata, porém, de uma simples harmonização das dinâmicas sociais, territoriais

e ambientais. Ao contrário, novos conflitos continuam a surgir em torno da represa. Para

Acserald (2004), conflitos socioambientais se estabelecem tanto pelo controle material de um

recurso, quanto por sua forma de uso, e envolvem grupos sociais com modos diferenciados

de apropriação e significação do território. A trajetória do turismo na região demonstra a

complexidade da situação.

8

Até os anos 1980, poucas pousadas existiam na orla do lago de

Furnas. Também não eram comuns lanchas, escunas, chalanas e jet-skis. Esta situação, no

 

entanto, mudaria na década de 1990. A privatização da orla da represa ganhou ímpeto graças

 ao crescimento do número de casas de veraneio, condomínios à beira da água, marinas e

pousadas. Hoje, segundo dados da ALAGO (Associação dos Municípios do Lago de Furnas),

existem 260 empreendimentos turísticos, entre hotéis, pousadas, clubes náuticos e pesqueiros.

Deste avanço do turismo dá indicação a matéria publicada em revista especializada:

Furnas se tornou uma espécie de Angra dos Reis de Minas Gerais (...).

O cenário [de Capitólio] é de arrancar exclamações de todo mundo que

chega lá (...). Nos dias mais movimentados, as lanchas chegam a fazer fila

no cânion, à espera da vez de entrar debaixo da queda d’água. Lembra as

concentrações de verão na Praia do Dentista, em Angra (Revista Náutica,

n. 256, dezembro de 2009, p. 47).

O depoimento de Ilma Luiza Generosa Alexandre oferece denúncia contundente do

processo recente de privatização da orla do lago:

Ainda gosto [de Fama], mas não como antes. Porque antes a gente andava

em qualquer parte da beirada da lagoa, ia a todo lugar, nadava onde

quisesse. Não tinha cerca nem casa encostada na água. Hoje a beirada

tem dono, sobrou só um pedacinho na frente da igreja. E quem vai nadar

ainda tem que tomar cuidado com as lanchas (Depoimento de Ilma Luiza

Generosa Alexandre).

Como em distintas regiões do país onde foram construídas grandes represas, seja para

geração de eletricidade ou para o abastecimento de áreas metropolitanas (LEONEL,1998;

HOEFFEL et al., 2008), muitos conflitos socioambientais perpassam o espaço regional

transformado pela construção da hidrelétrica de Furnas. Conflitos que configuram trade

offs para os sujeitos sociais envolvidos e mobilizam disputas concernentes a três variáveis

principais, a saber: a) o deplecionamento do reservatório em função das necessidades de

geração de eletricidade; b) a qualidade e a disponibilidade da água; c) o retorno econômico

para a região de lucros operacionais da Usina de Furnas. A Tabela 1 sintetiza os principais

conflitos no decorrer do período 1963-2009:

Tabela 1.

 

Conflitos de uso das águas de Furnas – 1963-2009.

Atores coletivos Interesses/ações

Furnas Eficiência máxima na produção de energia

Contenção de investimentos na região

Prefeituras Abastecimento de água

Maximização de royalties e compensações financeiras

Diluição de efluentes (esgotos)

Investimentos de Furnas nos municípios lindeiros

Fazendeiros Aproveitamento agropecuário das margens do lago

Uso da água para irrigação e dessedentação de rebanhos

Extensão de cercas de divisas

Liberdade de uso de adubos e defensivos

Donos de casas nas margens Domínio das margens

Qualidade da água do lago

Empresários de turismo Manutenção de cota mínima para o nível da água no lago

Domínio das margens

Qualidade da água do lago

Fonte: Elaboração do autor.

Atores coletivos Interesses/ações

Pescadores Acesso desimpedido ao lago

Qualidade da água

Ampliação da quantidade e diversidade do pescado

População em geral Acesso livre ao lago e suas margens

Transporte de pessoas e mercadorias através do lago

Qualidade e salubridade da água do lago

Infraestrutura e equipamentos para lazer no lago

Fonte: Elaboração do autor.

É, pois, diante da incontornável presença de Furnas e no âmbito de uma dinâmica

complexa de conflitos territoriais e ambientais que os moradores de Alfenas e Fama

reconstroem as percepções do espaço regional e, simultaneamente, reelaboram a memória

coletiva assentada nos lugares, contam e recontam suas experiências vividas.

5

O lago de Furnas nas páginas da imprensa alfenense

As alterações nas percepções do lago de Furnas ocorreram pari passu às mudanças

na maneira dos jornais locais produzirem matérias sobre a represa. Em uma interação que

engendra certa circularidade dos temas, informações e pontos de vista, os jornais de Alfenas

alimentaram (e foram alimentados pelos) novos sentimentos surgidos nas camadas populares

e nas elites letradas da região. As páginas do Jornal dos Lagos ilustram esse processo. A

Tabela 2 dá ideia da variação intertemporal dos assuntos referentes a Furnas no jornal:

Tabela 2.

 

 

A análise da tabela anterior permite inferências importantes. A primeira delas é que

a cobertura do jornal ficou mais densa e diversificada após 1992-1993. A partir desses anos,

maior número de temas ganhou as páginas do jornal, anteriormente concentrado em noticiar

afogamentos, prisões de pescadores e eventos de lazer no lago. Outra inferência diz respeito

ao deslocamento da atenção editorial para as questões do aproveitamento econômico do

reservatório de Furnas, bem como para os retornos financeiros da usina para as cidades da

região. Permanece a preocupação com o desenvolvimento do turismo e a ela se juntam as

matérias sobre royalties, piscicultura e coordenação política das reivindicações endereçadas

a Furnas Centrais Elétricas. Finalmente, na década de 1990 desapareceram as matérias sobre

impactos negativos da formação da represa. O jornal se volta para as possibilidades criadas

pelo surgimento do “Mar de Minas”.

Esta mutação é anunciada claramente por matéria publicada em fins de 1989, na

qual se lê:

Na formação do lago, as cidades atingidas perderam terras produtivas,

muita gente ficou doente, perdeu a vontade de viver e apenas ficou

olhando a água tomar tudo. Mas agora, com incremento ao turismo,

Furnas parece devolver o que tirou. Por causa da água estas cidades estão

sendo procuradas por pessoas interessadas em curtir o sol à beira do lago

(Jornal dos Lagos, n. 546, 16 de dezembro de 1989, p. 8B).

Já a matéria seguinte exemplifica a percepção positiva do “Mar de Minas” que

caracteriza a linha editorial do jornal na década de 1990, e que se mantém inalterada:

Todos os que estão próximos do lago de Furnas estão preocupados com a

possível privatização de Furnas Centrais Elétricas. O lago se transformou

numa fonte de renda para muitos os que exploram o turismo com

pesqueiros, pousadas, passeios, etc. Uma liminar na Justiça suspendeu

temporariamente a privatização de Furnas (Jornal dos Lagos, n. 1493, 12

de junho de 1999, p. 10).

No mesmo diapasão está a notícia sobre a criação de peixes no lago de Furnas:

A central de alevinos de Alfenas está em fase final de construção. Localizada

no Barranco Alto, ela possui 21 tanques escavados, laboratório de

reprodução artificial de peixes e uma fábrica de ração. Esta é praticamente

a primeira iniciativa bem sucedida no sentido de valorização e melhor

aproveitamento da represa (Jornal dos Lagos, n. 1416, 22 de agosto de

1998, p. 9).

Examinadas em detalhe, as matérias dos anos 1990 sobre o lago de Furnas no jornal

alfenense mesclam referências à beleza da região com considerações sobre o proveito

prático dos recursos existentes. O tom geral é o de realçar as virtudes do uso econômico da

natureza e das tradições regionais, com o objetivo de promover a integração da região nos

circuitos de negócios nacionais e internacionais. Representações associadas ao que Logan

e Molotch (1992) chamaram de “máquina de crescimento”: a constituição de uma aliança

de interesses públicos e privados, com sólida penetração nas mídias, que busca estimular

a expansão urbana e atrair pessoas e empreendimentos para determinado local ou região.

Tudo em nome da geração de impostos, empregos, renda e lucros, principalmente por meio

dos setores turístico, imobiliário e comercial. Entra em cena, dessa forma, a imagem da

represa como natureza mercantilizada. Para os homens de imprensa de Alfenas, a aceitação

dessa perspectiva seria o coroamento da história das relações entre a população e o lago de

Furnas, como sugere a matéria sobre piscicultura:

Até pouco tempo o que a população fazia era reclamar. Afinal muita

terra foi inundada pela represa de Furnas. Depois veio a fase de somente

aproveitar o lago sem qualquer cuidado para a sua preservação. [...] Agora

a realidade é outra, o lago pode se transformar numa imensa fonte de lucro

(Jornal dos Lagos, n. 1264, 15 de fevereiro de 1997, p. 13).

Convém frisar que não há descontinuidade absoluta entre as percepções do lago de

Furnas como natureza aprazível e natureza mercantilizada. A segunda incorpora a primeira,

embora ao custo de um deslocamento: a ênfase no “valor de troca” mais do que no “valor de

uso”. A natureza aprazível refere-se à paisagem (de beleza mitificada) como campo para o

gozo da vida, impregnada de subjetividade e afeita ao cotidiano, vizinhança, co-presença e

livre-fruição. A natureza aprazível é para ser apropriada. A beleza da paisagem e seu potencial

restaurador não desaparecem da percepção natureza mercantilizada, mas são subordinados

ao poder de consumo (que gera segregação do espaço) e à razão instrumental (que rebaixa

a importância do vivido na relação com a paisagem). A natureza mercantilizada – com sua

beleza, tranquilidade, “ar puro”, “verde” – é para virar propriedade.

6

Considerações finais

Para a maioria dos antigos moradores da região, especialmente os ligados à

agropecuária praticada nas vargens do Sapucaí e seus afluentes, as águas do lago de Furnas

inundaram os espaços mais valorizados econômica e socialmente. Para eles, a construção da

represa destruiu a “natureza” criada por Deus e o modo de vida tradicional, produziu perdas

e sofrimentos, ruínas e deslocamentos forçados, ameaçando os laços sociais e identidades

típicas de lugares que giravam em torno das roças e pastos. O lago pareceu-lhes uma obra

funesta.

Nem todos, porém, pensaram assim. Houve segmentos da população, vinculados

aos setores de comércio e serviços, que aceitaram o projeto hidrelétrico. Os moradores mais

jovens, nos anos 1970 e 1980, fizeram do lago de Furnas espaço de lazer, de sociabilidade,

de descanso em “contato com a natureza”. Estas novas gerações naturalizaram o lago de

Furnas, tornando-o parte destacada do seu imaginário geográfico. O espelho d’água de

Furnas apresentou-se para elas como natureza aprazível, emblema de pertencimento ao Sul

de Minas, “cartão postal” e “patrimônio natural” comum de diversas cidades. Os empresários

do turismo souberam reforçar e explorar estas imagens, notadamente a partir da década de

1990.

Estas representações do lago de Furnas convivem, não sem tensões e incongruências,

com outro conjunto mais recente de imagens. A partir dos anos 1990, empresários, técnicos

governamentais e agentes políticos municipais começaram a enxergar as águas da represa

 

sob a ótica da utilidade econômica. O “Mar de Minas” é, nessa perspectiva, oportunidade

para negócios públicos e privados e fonte de recursos oriundos de políticas ambientais de

cunho estadual e nacional. Uma natureza mercantilizada, um diferencial regional capaz

de propiciar inserção vantajosa para o Sul de Minas na era da “economia verde” e dos

“mecanismos de desenvolvimento limpo”.

Todos os conjuntos de percepções apontados compartilham o fato de serem simplistas,

no sentido de não compreenderem o meio ambiente e as paisagens de maneira abrangente,

como interação complexa de configurações sociais, biofísicas, políticas, filosóficas e culturais

(REIGOTA, 2002). Por conseguinte, além de ampliar a possibilidade de usos inadequados

do reservatório de Furnas e de seu entorno, estas percepções, em função de sua relativa

estreiteza, dificultam o diálogo entre os diversos atores envolvidos na construção do espaço

regional. Assim, o encaminhamento dos conflitos ambientais, que requer a busca de

consensos sobre as maneiras de lidar conjuntamente com as paisagens e de melhor gerenciar

o território (ACSERALD, 2004), especialmente no que se refere ao uso da água e do solo,

termina obstaculizado.

Evidentemente, a construção da Usina de Furnas deixou, em pessoas que vivenciaram

o processo, lembranças inesquecíveis e dolorosas. Hoje anciãs, elas ainda vivem esta dor no

presente. Mas, para os mais novos, o espelho d’água é apenas um lugar para curtir ou um

campo de negócios. Suas percepções já não abrangem o fato preciso, político e econômico,

que gerou o lago e muitos dramas humanos. Seria pertinente recuperar o fato para seguir

reelaborando percepções referentes ao “Mar de Minas”.

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Notas

1

 

O emprego de depoimentos publicados em jornal se justifica porque o roteiro das entrevistas feitas

pelo repórter, apreensível na leitura das matérias, tem similaridade com o roteiro usado nas entrevistas

 

realizadas diretamente pelo pesquisador.

 

 

2

O Alfenense

, 24 de fevereiro de 1957, p. 1. A peça citada é de autoria de Waldir de Luna Carneiro e foi

encenada pela primeira vez em junho de 1957, no Centro Católico de Alfenas. Em agosto do mesmo

 

ano, a peça foi apresentada no VI Festival Universitário de Arte, no auditório do Colégio Izabela

 

Hendrix, em Belo Horizonte, alcançando grande sucesso (O Diário, 13 de setembro de 1957). A peça

 

pode ser encontrada em CARNEIRO (2008, p. 53-85).

 

 

3

 

Em sua campanha presidencial, Jânio Quadros esteve em Alfenas. Jânio prometeu a construção de

estradas asfaltadas para suprir a extinção dos ramais da Rede Mineira de Viação. Essas estradas – atuais

 

BR-369 e BR-491 – só foram precariamente concluídas na década de 1970. A cidade de Fama, vinte

 

anos após o lago, tinha apenas um telefone, a energia vinha de um motor, as estradas não tinham asfalto

 

(VIEIRA, 2002, p. 45).

 

 

363

Olhares sobre o “Mar de Minas”: percepções dos moradores de Alfenas e

Fama relativas ao lago de Furnas (1963-1999)

Ambiente & Sociedade

Campinas v. XIII, n. 2 p. 347-363

jul-dez. 2010

 

4

 

Conforme Ilda Alexandre, no início dos anos 1970, “na Fama os mais velhos só xingavam a represa,

falavam ‘essa porcaria’”.

 

 

5

 

Vale lembrar que, “[...] quando uma determinada ideia de paisagem, um mito, uma visão, se forma num

lugar concreto, ela mistura categorias, torna-as metáforas mais reais que seus referentes, torna-se de

 

fato parte do cenário [...]” (SCHAMA, 1996).

 

 

6

 

Este foi o slogan da campanha de lançamento, em meados dos anos 1980, do Balneário Furnastur,

localizado em Formiga, uns dos primeiros grandes empreendimentos turísticos na orla da represa.

 

 

7

 

Por “valores de amenidade” pode-se entender conjunto de bens não-materiais que refletem a qualidade

de vida, relacionados a características naturais e atributos gerados pela própria sociedade que afetam

 

positiva ou negativamente a satisfação dos indivíduos (MAY et al., 2003).

 

 

8

 

A expansão do capital, seja por meio da mineração, das indústrias intensivas em recursos naturais ou

do turismo, aprofunda a apropriação assimétrica da natureza, implicando em restrições de vida para os

 

grupos que se encontram em posições mais vulneráveis (MASSEY, 2000).

 

 

 

 

Ambiente & Sociedade

Campinas v. XIII, n. 2 p. 443-454

jul.-dez. 2010